Diário da Serra
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‘Oh! Mundo tão desigual, tudo é tão desigual. Oh! De um lado esse carnaval, de outro a fome total...’

Sílvio Tamura 13/11/2018 Artigos

Carolina de Jesus (…) conseguiu vencer e se destacar entre grandes nomes

Artigo

Favela do Canindé (SP), década de 1950. Os barracos eram construídos com tábuas e restos de madeira, fixados por pregos e arames. Os telhados eram cobertos por papelões e cacos de cerâmica. Não havia água encanada, saneamento básico nem asfalto. Volta e meia, quando chovia, uma casinha ia ao chão, deixando mais um desabrigado. Entre os moradores, havia uma ‘diferente’: Carolina Maria de Jesus. Tinha ela um costume ‘incomum’ para eles: gostava muito, muito, muito de ler. Carolina lia tudo que encontrava pela frente: livros, jornais, revistas, manuais, etc. Ao contrário dos demais, Carolina Maria sabia ler e escrever. Curiosamente, frequentou a escola apenas dois anos. Entretanto, tinha fascínio pela leitura. ‘Todos têm um ideal. O meu é gostar de ler’. Favelada, não tinha condições; por isso, revirava latas de lixo, procurando exemplares descartados por alguém. Por vezes, ficava olhando vitrines de bancas, lendo manchetes e capas de revista. ‘Saí de casa às 8 horas. Parei na banca de jornal para ler as notícias principais’. Carolina convivia com delinquentes, passava fome, mas nunca se entregou ao crime. ‘É por intermédio dos livros que adquirimos boas maneiras e formamos nosso caráter. Se não fosse por intermédio dos livros, eu teria me transviado, porque passei 23 anos mesclada com marginais’. Carolina também tinha extrema admiração pela escrita, e um dia, teve a ideia de escrever um diário, relatando seu dia a dia. Carolina de Jesus passava muito sofrimento: fome, dificuldades financeiras, doenças e outras adversidades. Escrever era uma forma de externar seus sentimentos. Não tinha condições, por isso, procurava nas lixeiras cadernos usados e folhas de papel para escrever. Posteriormente, escrever tornou-se um ‘remédio’ psicológico. Escrevia para esquecer, para espairecer. ‘Passei a noite assim: eu despertava e escrevia. Depois, adormecia novamente’. Igualmente, Carolina escrevia para enganar a fome. ‘Quando eu não tinha nada o que comer, em vez de xingar, eu escrevia’. Tudo o que acontecia, Carolina registrava em seus cadernos humildes e encardidos. As angústias, a fome e as dificuldades eram temas frequentes. A tribulação era tamanha, que certa vez escreveu: ‘Eu não tinha um tostão para comprar um pão’. Carolina trabalhava catando papéis na rua, vendendo-os nas casas de reciclagem. Carregava uma pesada carroça nos ombros, a qual usava para transportar materiais. Um dia, trabalhou até anoitecer, e não conseguiu absolutamente nada. ‘Eu não tinha dinheiro para comprar pão. Trabalhei até as 11h30. Quando cheguei em casa, era 24 horas’. Mãe solteira, Carolina criava três filhos sozinha. Uma vez, o dinheiro deu para comprar somente um pão. Em seguida, dividiu-o em três partes, e entregou um pedaço para cada filho. Num dia de julho, era aniversário da filha. Carolina queria presenteá-la, porém não havia como. Andando pelas ruas, encontrou um par de tênis jogado no lixo. Em casa, lavou-o bem direitinho e deu-o de presente para a filha. E a menina ficou feliz da vida. Noutra ocasião, registrou no diário: ‘Ontem, comi aquele macarrão do lixo com receio de morrer’. Certa vez, a vizinha pediu à porta de uma casa o que comer. De lá, uma mulher entregou-lhe um embrulho. Quando abriu, levou um susto: eram dois ratos mortos. Triste, Carolina relatou: ‘Tem pessoas que zombam dos que pedem’. Em 2018, as escritas de Carolina Maria de Jesus completam-se 60 anos, desde a primeira publicação num jornal, em 1958. Em 1960, ganhou versão em livro, intitulado: ‘Quarto de Despejo: Diário de Uma Favelada’. Vale muito a pena a leitura. Guerreira, Carolina de Jesus provou que mesmo de origem tão humilde, moradora de uma favela, passando fome e dificuldades, conseguiu vencer e se destacar entre grandes nomes. Referência do movimento feminista no país, suas obras foram traduzidas para mais de 10 idiomas, consagrando-se uma das mais importantes escritoras brasileiras do século 20. Viva Carolina de Jesus! Viva!

Sílvio Tamura, graduado em Comunicação Institucional.

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