Diário da Serra
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‘Havia algo de insano naqueles olhos... Olhos insanos... Os olhos que passavam o dia a me vigiar... a me vigiar...’

Sílvio Tamura 30/10/2018 Artigos

Não se cale; não se omita. Sejamos todos protagonistas destas mudança

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Era uma vez, num reino muito distante, um monarca que morava sozinho num grande castelo medieval. Tinha ele aparência muito estranha, e devido à cor da barba, deram-lhe um apelido: Barba Azul. Certo dia, da torre, avistou uma jovem andando sozinha pelas ruas do vilarejo. No dia seguinte, bateu à casa da moça, apresentou-se como imperador e pediu à mãe a mão da filha em casamento. Convite aceito, logo se matrimoniaram. Certa vez, o marido viaja e deixa-lhe um molho de chaves. Entretanto, recomenda-lhe, de forma alguma, adentrar no último piso. Desobedecendo-o, a esposa sobe à cobertura e abre o misterioso compartimento. Neste instante, leva um grande choque: descobre, então, que o homem com qual se casara assassinava suas companheiras meses depois do matrimônio. Ao olhar para trás, depara-se com o cônjuge, que enfurecido, repreendeu-a pelo feito, avisando que iria matá-la. Apavorada, a mulher foge pelas escadas, gritando socorro. Por sorte, pela redondeza passavam alguns soldados, que vendo-a desesperada, invadiram o palacete. Amedrontado, Barba Azul escorrega, bate a cabeça e acaba morrendo acidentalmente. Esta é uma síntese do conto ‘Barba Azul’, do escritor parisiense Charles Perrault. Muitos literatos defendem que esta publicação fora inspirada num caso verídico, de um soberano que costumava dizimar suas nubentes. De autoria desconhecida, a coletânea ‘Mil e Uma Noites’ apresenta o rei Shariar, que retornando de uma caçada na floresta, descobre o caso extraconjugal entre a esposa e um escravo do casarão. Imediatamente, Vossa Majestade ordena decapitar os dois com golpes de espada. Insatisfeito, o fidalgo delibera matar todas as mulheres do povoado, de maneira extremamente grotesca: todos os dias, determina trazer-lhe uma noiva; com ela se casa e após uma longa noite de núpcias, entrega-a na manhã seguinte para os súditos, para que seja espancada, maltratada, humilhada e executada. Assim, todos os dias, a rotina se reprisava; e a cada noite, uma mulher era subtraída da população. Noutro relato, uma senhorita, distraída, olhava um rapaz andando a cavalo. O marido, vendo-a observando o cavaleiro, saca uma espada e lhe corta a cabeça, alegando: ‘Cometeste traição com os olhos’. Extraída do imaginário popular, esta seleção de prosas teria origem na Pérsia Antiga, registrada por viajantes escribas. Tanto ‘Barba Azul’ quanto ‘As Mil e Uma Noites’ são narrativas medievais. Tal fato denota que a violência contra a mulher não é uma invenção da Modernidade, mas sim uma prática secular, que atravessa gerações. Saindo das páginas literárias, a realidade não é muito diferente. A mulher continua sendo alvo da violência. Em 2 de Novembro celebra-se o Dia de Finados. Infelizmente, quantas mulheres encontram-se ali, sepultadas, em decorrência de assassinatos, maus-tratos e misoginia? Quantas velas poderiam deixar de serem acesas em lembrança dessas vítimas de feminicídio? A vida imita a arte? Ou a arte imita a vida? Ou vice-versa? Entretanto, há uma importantíssima diferença: nos romances, novelas e contos de fadas, o expectador nada pode fazer, cabendo-lhe apenas ler e comover-se com as personagens. Fisicamente, é impossível entrar num livro, enfrentar malfeitores, impedir tragédias e salvar inocentes. Neste caso, o leitor é mero passivo. No entanto, felizmente, na vida real é diferente: o ‘leitor’ pode e deve interferir nos acontecimentos. Por isso, a mobilização da sociedade é imprescindível para a modificação deste status quo.  Não se cale; não se omita. Sejamos todos protagonistas destas mudanças. Somente assim construiremos um mundo melhor. 


Sílvio Tamura, graduado em Comunicação Institucional. 

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